domingo, 16 de janeiro de 2011


Voltando pra Casa

Ele fitou-a. Viu como estava linda. Um pouco envelhecida, mas linda. Havia uma ruga bem pequenina no canto de sua boca, um simples traço que a saudade quis desenhar para que ela nunca se esquecesse dos bons tempos que ambos passaram naquelas duas pequenas cidades, quase gêmeas, cravadas naquele vale cortado por um imponente rio que morria pouco a pouco.
A poeira da idade começava a cair sobre os cabelos dela, já não eram mais tão negros e tão lustrosos. O sorriso, bem, este continuava o mesmo. Quadrado, cheio de vida, cheio de energia, cheio de promessas, cheio de alegria. No nariz, havia o piercing que ela sempre sonhou em colocar desde os tempos de garota, mas seu pai era radicalmente contra e ela sempre fora um filha obediente, embora muitas vezes birrenta.
Não era feia nem bonita. Em verdade, mais engraçada do que bonita, o que lhe rendia boas risadas que lhe ajudavam a preservar seu corpo durante todos aqueles anos e uma boa quantidade de amigos ao seu redor, ou simplesmente pessoas em desespero que queriam um pouco da sua energia para enfrentar as amarguras diárias de uma vida demasiadamente material.
- Você pôs uma tatuagem... – Comentou Felipe enquanto o vento esvoaçava os cabelos de Clara, como ele costumava fazer quando estavam sozinhos, perambulando pela cidade vazia.
- Você também. – Falou Clara apontando para o braço do rapaz.
Riram. Sabiam que seus respectivos pais dirigiam olhares de reprovação às suas expressões corporais, cabelos (ausência, no caso dele), brincos, piercings e com certeza dirigiriam também às suas tatuagens.
- Vamos para casa, já está ficando frio. Você fez uma longa viagem, deve estar cansado...
A casa se encontrava de portas abertas, sem ninguém dentro. Uma casa simples e confortável. Fresca no verão e quente no inverno. Pelo chão, estendia-se uma imensa mandala que ambos haviam construído em outros tempos com pedaços de azulejo e restos de pisos quebrados, um imenso mosaico majestoso que gerava um clima de paz e harmonia naquele ambiente que não era grande nem pequeno. Ali não havia excessos. Havia muito verde e muitos livros. Havia um violão velho sem a primeira corda, poltronas na sala de televisão e uma escada que dava para os quartos no andar de cima. 
Ela estava usando óculos para ler. Desde quando começou a se queixar que estava sentindo dores de cabeça ao passar muito tempo lendo e que isso estava refletindo nos seus escritos. Realmente a idade havia chegado para ambos, muito mais cedo no caso dele, que envelheceu precocemente de tanto ouvi-la dizer que já estava velho. Mas sempre com muito bom humor e toda a dignidade que a falta de cabelos lhe proporcionava.
Sim, ele havia envelhecido em meio às atrocidades da Guerra, que o destroçou, transformou seu corpo em um resto, jogado, largado em meio à lama, ao barulho dos tiros e explosões e ao cheiro de pólvora, em plena Normandia. Ele percebeu que as cores do uniforme militar que usou em outrora formava agora o belo dégradé. O corpo branco dela, vestido com uma camisa tamanho “G” masculina e marrom, coberto com uma manta também marrom num tom mais claro, sob um lençol cuja cor não identificada, variante da mistura de marrom com cáqui.
Naquele momento ele acabara de notar que estava começando a querer e a gostar de viver. Percebeu que a felicidade está nas coisas simples, no “bom dia”, no abraço, no café, no carinho dos filhos que nunca tivera, nos amigos e na família, da qual ele sempre andou ausente. Percebeu que não adiantou passar a vida inteira juntando dinheiro e glória e que de nada valia aquelas medalhas que colecionou durante toda vida. Ele estava feliz em voltar para casa. Não queria mais voltar a encarar a fera que habita dentro dos homens nem a devastação que esses conseguem fazer com seus semelhantes. Lembrou das atrocidades que viu serem cometidas. Chorou. Chorou de alivio por tudo aquilo ter acabado para ele. Chorou por estar de volta na casa em que ele havia morado durante toda sua vida, onde envelhecera e onde haveria demorar durante o resto dos seus dias. Ele estava começando a querer e a gostar de viver.

(fragmento do meu livro. Hehehe...)


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